Conduzido por sensações parei. Parei para pensar no que sentia. Senti que parei. Deixei de sentir...

segunda-feira, maio 24, 2004

O conto do pêlo tresmalhado e do velho orgulhoso

O bigode, caiado de branco, de quando em quando, era penteado pelo pente atento. Os pêlos tresmalhados eram calma e organizadamente domados, segundo a vontade do seu mestre. Este mais não era do que um velho orgulhoso, que passeava e exibia o seu farto bigode aos demais velhos, de devaneios capilares timidamente demonstrados. Um certo dia, ou incerto porque não consta data, enquanto o pente se passeava ditatorialmente sobre os pêlos vergados pela soberania deste, eis que o titulo do conto ganhou alento...

O pêlo, de seu nome capilar, ausentou-se das suas funções de vassalagem e de voz grossa, como se este a tivesse, gritou bem alto o grito pintado por Munch e expelido em ipiranga. E gritou, pela recusa de aceitação de posição das massas, pela recusa ao conformismo, pela recusa ao trabalho não assalariado. O velho, excusando-se a ouvir, continuando a bulir e surdo no sentir, arranhava os pêlos doridos pela recusa. Os pêlos doridos, mas atentos ao colega capilar, entre receio e orgulho hesitavam em que decisão tomar...

Lentamente se eriçaram também, lentamente passaram palavra aos demais, lentamente contagiaram as vontades dos que ainda se escondiam entre os sulcos lavados da face velha do velho teimoso: os da guerrilha já quase esquecida. E, de todos os sulcos e de todos as reentrâncias, um movimento sem precedentes emergiu. A batalha dos pêlos pelo territorio perdido...

O velho, que já não sentia a pele nua, que havia sido invadida pelos pêlos lutadores, esbaforidamente quebrava as portas e corria para o exterior, mas a luz já não via, os olhares de admiração dos outros velhos já não os sentia, e nem gritar podia. Perdido, algures no chão molhado da chuva, que entretanto caía, começou a chorar. Cada lágrima abria espaço entre os pêlos, traçava um caminho, como os pioneiros haviam traçado caminhos rumo às suas futuras terras, e aí ele entendeu. E sorriu, entre os rios fluentes de lágrimas, que lhe desenhavam os contornos da face feliz.

domingo, maio 23, 2004

Sabores

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta perscrutavam as ideias...
procuravam sabores ocultos, entre verdades relatadas pelas velhas mãos de cozinheiros sábios...
Remexiam segredos nunca saboreados, remexiam aromas ocultos, remexiam paladares exoticamente fabricados...

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta elevavam ideias, tornando-as reais com o simples toque...
Tornavam-nas reais com o toque da lingua, outrora muda, agora fluente em desvendar os segredos passados pelas velhas mãos...
e os segredos do ontém, desfeitos no hoje, ganhavam a esperança do amanhã...
ganhavam o alento de que as descobertas mais não fizeram do que traçar novas rotas, novos caminhos por percorrer...

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta continuavam com a forma do ponto de interrogação, agora mais colorida e mais luminosa...mas sempre na eterna descoberta de novos sabores...

domingo, maio 16, 2004

Atacadores

Mãos singelas giram delicadamente os atacadoes soltos, dos sapatos sujos, do pequeno rapaz...
Olhos trôpegos brilham de alegria esquecida, e atentam aos movimentos dos dedos que, carinhosamente, manuseiam os atacadores...
Imagens saudosas dificultam os olhos húmidos de tecer laços firmes...desenham histórias passadas em atacadores apertados...tecem memórias em nós dados...
Um sorriso esboça-se, por entre duas lágrimas frias, que traçam os contornos de uma face desenhada com sofrimento, lívida de amor...Um sorriso, que se transforma rapidamente em temor...e um soluçar, que revela um forte ardor...
O rapaz observa-a...admirado...confuso com a sua reacção...
Atento à voz da sua mãe, que o chama ao longe, corre na sua direcção...
Corre, olhando a mulher, uma última vez...
Ela, de joelhos, olha os seus dedos...os dedos de mãos singelas...de mãos, que antes apertavam os atacadores soltos de outros sapatos sujos...de outros sapatos sujos que não desenham mais memórias...

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