Conduzido por sensações parei. Parei para pensar no que sentia. Senti que parei. Deixei de sentir...

sábado, outubro 30, 2004

Traçar futuros
Não sou mais do que a breve sombra esquecida pelo amanhã, a imagem consumida pela amálgama de indecisões presentes e o reflexo distorcido de tardes soalheiras passadas...
Se uma sombra pudesse ter a forma de uma estrela nem assim eu hesitaria em a trocar por qualquer forma disforme presenteada pelos passados luminosos cujos sorrisos nunca se mostraram preguiçosos...
Mas o presente não se esboça em estrela, o passado não ilumina a minha mente, nem o sorriso alguma vez revelou a árdua tarefa de traçar o rosto...
E, assim, num presente a recear um futuro, um passado seria sempre uma benção da memória ilusória...de uma memória encarregue de desenhar vidas iluminadas, escritas sobre palavras reais, enobrecidas pelo irreal da esperança...

segunda-feira, outubro 25, 2004

Como pintar uma tela sem tinta? como tecer um bordado sem linha? como viver sem vida???

A moldura da raça humana é o corpo fútil que apodrece...os genes da imortalidade riem-se da casca seca e ignobil que cobre o corpo inútil e revigoram no tempo em gargalhadas intemporais...
O engodo do infinito traçado em linhas de vida engana o mortal que, morrendo, conhece o lado jocoso do conhecimento...e, algures perdido em limbicos e labirinticos corredores, alguém, que não interessa quem, calca o nada, supenso no espaço limitado pela vida e pela morte...

O nada, que se entretém a escrever as memórias em tinta amnésica, lida com a razoabilidade do infinito de sentimento anestesiando-o com a simples não-existência...

E, no dia em que o alguém, que não interessa quem, evaporou e foi engolido pela nuvem mais negra do esquecimento esperado, senti-me pesado pelo remorso...e, ao mesmo tempo, leve da responsabilidade de tentar perceber....de tentar tecer um bordado, de pintar uma tela, de viver...

quarta-feira, outubro 13, 2004

O caracol de casca metalica aparentava querer ostentar as antenas, que lhe permitiam a tal emissão dos sitcoms ingleses, que ele adorava. Passeava-se pelo campo de golfe, expelindo um ou outro grunhido seco. Erguia, com o auxilio de uma qualquer geringonça metalica, um livro aberto iluminado por uma pequena lâmpada fluorescente. Lá conseguia-se ler as seguintes palavras meio sumidas:

O baton que pinta o berro...
As palavras pesadas em balanças viciadas...
os gestos ponderados por manuais equilibrados...

E quando o castor o interrompia com as boas noites do costume, ele retorquia quase num esgar de palavras a roçar o rude, porque tinha noção que aquele castor adorava os dedos todos de conversa que lhe pudessem fornecer. E ele não tinha tempo. Tinha que finalizar o poema e posteriormente tinha o sarau da sitcom favorita. A luz intensa que a casca permitia descobrir, pelas imperfeições da liga de metal, desenhavam pequenos circulos nas poças de água exteriores. E essas poças, por vezes, quando o caracol parava para conceder toda a sua atenção à sua pequena televisão eram autênticas telas que atraiam os vários animais que viviam nas copas das árvores limitrofes. Esquilos, pardais e outros pequenos seres juntavam-se, abraçando-se uns aos outros em noites frias, e assistiam aos mesmos programas que o velho caracol.

O caracol vivia no caule do malmequer número 34, 3ºandar. Aliás, o facto de ter sido um dos primeiros a ocupar o malmequer permitiu-lhe ter acesso ao 3 andar por inteiro. Este malmequer era diferente de todos os restantes malmequeres do jardim. Isto porque crescia haviam 50 anos sem cessar. Todos os anos algum cientista vinha a correr com mais uma teoria esboçada em papeis soltos e sujos de café e gritava esbaforido: posso finalmente provar cientificamente que este é o último ano em que vamos assistir ao crescimento físico deste malmequer. Mas todos os anos o malmequer voltava a enganar a ciência limitada destes seres.

O caracol, cujo nome era Abdul devido ao facto de ser descendente de caracois muçulmanos, aproximava-se lentamente do malmequer. Pretendia ver o episódio 24 de Seinfeld no conforto da sua casa. Muitos questionavam-lhe (incluindo o próprio leitor) o facto de este precisar realmente de uma segunda casa, já que parecia óbvio que quem tem uma carapaça como a que ele ostantava podia bem sobreviver sem a casa do malmequer. Ele detestava responder a esta questão até porque a única explicação associada a isso tinha a ver com o desvendar do seu hobby preferido e ele não era de se abrir e muito menos com leitores estranhos. A verdade é que este era um poeta. Não um poeta famoso. Um poeta que escrevia sobretudo pelo prazer de escrever. De si para si.

Abdul, para facilitar a coisa, subia já o caule de forma lenta causando arrepios de impaciência a qualquer minhoca que se cruzava por ele.

Alguns piolhos da fruta ainda jovens aproveitavam o rasto de nhanha deixado pelo nosso Abdul para deslizarem. Entretinham-se a fazerem provas de quem conseguia percorrer a maior distância com um único impulso. Outros aproveitavam o declive acentuado do caule para deslizarem até à raíz. Era uma espécie de cauleboard em que os mais talentosos conquistavam a atenção das piolhas.

A porta pintada de castanho seco abria-se e uma luz intensa amarelada descobria um espaço acolhedor. Abdul entrou. As paredes estavam forradas de alguns poemas que este se entretinha a catalogar com datas e titulos nem sempre muito aproximados ao conteúdo.

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