Conduzido por sensações parei. Parei para pensar no que sentia. Senti que parei. Deixei de sentir...

sexta-feira, junho 04, 2004

Confronto

O cão, animado com o seu próprio som, uivava elegias proféticas sobre ossos enterrados...
Uivava de alegria, de ventre peludo, robusto e orgulhoso da caça feliz de dias de labuta recompensadas. De quando em vez, sacodia os toscos pelos com a desajeitada encardida pata...

Os troféus, esses, levava-os ainda visiveis no focinho, suculentemente ornamentado...
A lingua saciada cambaleava entre dentes e a parte do focinho ainda recheado da mescla de terra ardente e de comida teimosa em ser digerida...

O bafo quente contrastava com o frio da noite e desenhava humidade no ar. A lua era o abajur perfeito que condensava e vibrava a luz da lâmpada, que o corpo hirto do cão iluminado exalava...a noite era a serva de um mestre altivo e seguro...um mestre indiferente às ameaças do mundo hostil que o rodeava...

Entre uivos, lambidelas e estouvados orgulhos os passos pesados e descuidados da criatura, que se aproximava, foram descuidadamente ignorados pelo mestre da luz...

Em poucos segundos a proximidade tornou-se demasiada para não ser reparada...o incauto cão pouco tinha a fazer para reparar a sua frágil percepção...os dentes da criatura assumiam o grotesco e ela a qualidade de monstro...o seu rosnar calava a noite...a sua furia escurecia a lua...os seus olhos faziam esquecer o orgulho...

Quase sem pensar correu...fugiu sem escolher direcção...e enquanto fugia mantinha na retina o rosto demoniaco da criatura...os olhos de fogo, as patas de chumbo, os dentes de morte...e, mesmo assim, aos poucos e poucos crescia dentro dele o sentimento que podia enfrentar esse monstro, se tal fosse necessário...podia simplesmente parar, virar-se, e mostrar que a sua presença também inspirava temor...mas não...ele corria mais rápido...era mais lesto a movimentar-se...e por isso não hesitava em correr e em evitar o confronto...

E fugia, ganhando distância...fugia ganhando confiança....fugia a pensar se conseguiria debater-se com tal criatura...e entre cipestres queimados, por cima de folhas derretidas em fogo, debaixo de um céu vermelho de sangue deu de caras com uma outra criatura...em tudo semelhante à que ainda a perseguia...em tudo semelhante mas mais tenebrosa, mais vil, mais demoniaca e mais rapida e lesta a movimentar-se...

O pânico afogou-o de tal forma que mal conseguia respirar...parou...congelou...olhou para trás onde a criatura, que o seguia, perdia o estatuto de monstro e assumia o estatuto de antiga esperança...
Essa mesma criatura parava também...hesitava, atenta à reacção do cão...cercado...

O actual monstro sorria e aproximava-se lentamente, demonstrando confiança...e o cão pensava no que fazer....e, arrependido de anteriores decisões, sentou-se e esperou...

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