Conduzido por sensações parei. Parei para pensar no que sentia. Senti que parei. Deixei de sentir...

quarta-feira, janeiro 14, 2004

O sol e o seixo cor de púrpura

Lá ao fundo, as ondas comunicam por habilidosas formas desenhadas em espuma salgada, branca e aveludada…pela expressividade quase musical com que estas formas assumem no ponto mais elevado delas…e pela cadência trabalhada com que estas descem a pique contra a areia profunda…
São quase sempre monólogos sobre o sal que lhes dá a beleza, sobre a vida que arrastam, e que transportam nas suas longas e distantes viagens, sobre as suas esmeradas capacidades artísticas de moldarem as rochas, deixando para trás as suas eloquentes assinaturas...assinaturas em forma de declarações de amor ao vasto oceano, de que elas também fazem parte…

Entretanto, cá mais perto da praia, nos limites entre as orgulhosas ondas e a terra pintada de água, algumas delas irritam-se com a areia que lhes entra nos olhos…e, ao tentarem expelir esses grãos impertinentes, que as mantêm cegas, batem com violência contra rochas e contra os restantes grãos de areia...e, quanto mais forte batem, mais confusas são as palavras, mais caótica a cadência, mais difuso o sentido…
as ondas mais atrasadas assumem esta confusão, esta cegueira de sentidos, como uma declaração de guerra…uma disputa de território…uma prepotência que não estão dispostas a tolerar…uma tentativa de desferir um golpe profundo no seu orgulho...

Sentado, algures no pontão, observo as ondas gigantes, eriçadas, irritadas a debaterem-se com as pequenas partículas de areia…

Mais atrás, as demais ondas, feridas no seu orgulho, preparadas a mostrar o que valem, a quem lhes arruinou a calmaria daquele por do sol, assumem posições de ataque…entram em debandada contra as posições das primeiras…acotovelam-se e mostram-lhes do que são capazes…chicoteiam as rochas, arrastam enormes porções de areia consigo, libertam a espuma da raiva, gritam bem alto o quão poderosas conseguem ser…

O som de fúria e o movimento hostil destas entristece o sol, que se entretinha a observar delicadamente um pequeno seixo púrpura que lhe sorria…que lhe cantava canções de maresia, que lhe contava histórias de marés, que lhe segredava paixões entre correntes marítimas…

Um seixo, que atrevidamente se apaixonava pelo calor que o sol libertava…pela cor de um sol, que brilhando alto, corava com as canções, com as histórias, com os segredos partilhados…pelo seixo apaixonadamente contados…

A meio de uma canção de amor, entre um cavalo-marinho e um líquen dourado, as suas palavras foram arrancadas de forma violenta, o seu corpo usurpado, a sua música saqueada pelo som mais forte e pela fúria intempestiva de uma das ondas, que o arrastou consigo…que o engoliu e o conduziu para as entranhas de um oceano frio e escuro…longe do calor de um sol atento e luminoso…

O sol, não o encontrando, não sentindo o seu sorriso, não ouvindo a sua melodiosa voz, não sentindo mais a sua leve presença…decide fechar o véu, que o vai encobrindo, aos poucos…aos poucos, puxa o véu cinzento e negro, um véu coberto aqui e ali por réstias de algodão branco que teimosamente mantêm as formas das imagens apaixonadas das histórias do seixo cor de púrpura…e, embora o véu se feche quase por completo, continuamos a ver o sol…um sol triste, sozinho a abandonar aos poucos o local onde, outrora, um seixo e um sol falavam…

As nuvens, que assistiam ao romance e que se entretinham a esboçar as histórias, que ouviam, no céu azul, e que por isso haviam conquistado a amizade do sol, choram agora a sua despedida…choram violentamente…

Mas as ondas, absortas da carícia triste das nuvens e ainda enfunadas de orgulho, continuam no seu jogo mesquinho de posições...a mostrarem a todos e a ninguém a sua vaidade, a sua prepotência…alheadas da pouca luz…alheadas da escuridão que engole o céu…alheadas da destruição de sentimentos…

Até ao momento em que o cansaço se sobrepõe…e aos poucos se acalmam…e se esquecem da causa de tanta fúria…vencidas por si mesmas…acalmam como se nada se tivesse passado…felizes novamente brincam entre si…entre si e entre os demais elementos marinhos…

As gaivotas, tais ardinas da tristeza do dia anterior, aproximam-se para contar a todos a história de amor de um seixo cor de púrpura e de um sol que continua sempre a rodar, sobre uma esfera azul e verde, à procura do seu amor…

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